Os incêndios de verão em Portugal já são uma espécie de dado adquirido, uma inevitabilidade e a maioria de nós não acha que possam ser totalmente evitados.
Cabe à população e equipas de emergência controlar o fogo e no final do verão, fazemos as contas aos prejuízos e preparamos lindos planos de contingência para o ano seguinte, que não parecem dar em nada.
No entanto, o fogo é mais do que centenas de bombeiros exaustos e propriedades perdidas. Há toda uma componente psicológica altamente traumática para quem vê as chamas aproximarem-se.
Pedrogão Grande - a mancha negra na história
A repetição frequente de um acontecimento trágico dá-lhe uma certa aura de normalidade e nem sempre lhe damos o devido valor. Muitos de nós, nunca pensaram muito no assunto antes da tragédia de 2017 em Pedrógão Grande.
Mais de 250 feridos e 66 mortos eram números inesperados, nunca vistos e teve um impacto a nível nacional. Pela primeira vez, as pessoas perceberam a necessidade do apoio psicológico às populações. Ainda assim, o impacto dos chamados “incêndios de verão” na saúde mental é enorme, mesmo quando não atinge estas dimensões infernais.
A dor da população
As imagens dos idosos a chorar desesperados ou a ser carregados em braços pelos bombeiros são terríveis e de uma crueldade assustadora. No entanto, os efeitos do fogo são transversais a todas as idades.
A nossa casa é o nosso porto seguro, tem as nossas coisas que por valor financeiro ou emocional são extremamente importantes para nós - muitas vezes só percebemos isso após as perdermos - e o sentimento de medo pela família e amigos, bem como a aterradora noção de ter zero controlo sobre os acontecimentos é altamente traumática em qualquer idade.
Ainda assim, é de referir que para os mais velhos, o impacto das perdas pode ser vivido de forma mais traumática, pois sentem que não terão tempo para recuperar. Não voltarão a construir a sua casa, ou a recuperar os seus terrenos. A solidão já é grande e muitas vezes, perder uma pessoa significa que não têm mais ninguém. Há uma fragilidade associada à idade que não pode ser ignorada no apoio à população. Estas pessoas sentem que já não há recomeço possível.
O sofrimento dos bombeiros
Os bombeiros são vistos como os grandes heróis que abdicam do verão para combater incêndios e ajudar os outros. Maioria da população demonstra grande amor e empatia por eles, mas, na verdade, uma parte essencial é esquecida: os heróis também sofrem.
O cansaço físico e os perigos para a saúde são óbvios, mas a saúde mental é uma espécie de parente pobre no nosso SNS e isso estende-se aos nossos bombeiros.
Um estudo da Universidade de Coimbra concluiu que 82% dos bombeiros participantes no estudo já estiveram expostos a pelo menos 20 situações potenciadoras de trauma. O trauma psicológico é um grande incapacitante do funcionamento normal e capacidade de tomada de decisão em situação de perigo.
Os nossos bombeiros são duplamente penalizados e correm riscos em dobro pela ausência de apoio ao nível da saúde mental.
O que foi feito e o que devia ser feito
Há equipas comunitárias de saúde mental que podem garantir o apoio adequado aos indivíduos mais vulneráveis, no entanto, e apesar dos mais variados esforços, elas não chegam a todos. O mesmo ocorre para o núcleo local de resposta a catástrofes, formado por um médico, um enfermeiro, um psicólogo e um assistente social, o que em casos de situações graves e com muitas vítimas é claramente insuficiente.
Uma Comissão formada para o efeito determinou os quatro vetores principais em que o seu trabalho deve assentar:
1. Promover e assegurar a acessibilidade aos cuidados de saúde por parte das populações, em tempo adequado, valorizando as soluções de proximidade, coordenando as intervenções, quer as de natureza preventiva, quer as de ação terapêutica, através da dinamização das equipas comunitárias, multidisciplinares, envolvendo os diversos profissionais de saúde mental, de modo a integrar respostas concertadas junto da população em risco;
Situação atual: Apesar dos melhores esforços de um sem números de profissionais, continua a haver queixas de que os cuidados são poucos e a não chegam atempadamente a quem mais precisa.
2. Assegurar informação atualizada junto da comunicação social sobre as ações empreendidas, de modo a obter a sua colaboração na necessária informação à comunidade e facilitando a articulação das ações, designadamente com as entidades locais, autarquias e instituições sociais e solidárias, de modo a potenciar sinergias nas intervenções;
Situação atual: As pessoas estão cada vez mais informadas sobre a importância da saúde mental, mas os recursos ainda são demasiado escassos e a população mais idosa, a mais afetada devido à grande quantidade de idosos nas aldeias mais afetadas, ainda não tem informação suficiente nem sabe onde ou como pode pedir ajuda.
3. Caraterizar a população em risco, tendo em conta as perdas sofridas, a sintomatologia evidenciada, os recursos individuais e do sistema familiar em causa e os antecedentes psicopatológicos revelados, com especial atenção às situações de risco de suicídio;
Situação atual: O levantamento de dados é provavelmente a fase mais avançada até agora, no entanto, não tenho dados suficientes que garantam que o rastreamento das situações mais perigosas esteja, ou não, a ser realizado efetivamente.
4. Produzir recomendações para a estruturação de respostas na área da saúde mental, em situações similares futuras de calamidade, com esta dimensão e impacto, a nível local, regional ou nacional, equacionando modelos de intervenção na comunidade, em articulação com o poder local, com os serviços da segurança social, com os diferentes cuidados de saúde, bombeiros, comunicação social, associações particulares de apoio, e outras estruturas relevantes da comunidade.
Situação atual: Foi posto em prática, mas com o passar do tempo e a memória coletiva a começar a esquecer, muitas das ideias são atiradas para o fundo de uma gaveta e totalmente esquecidas.
(A “situação atual” é uma leitura pessoal, conforme os dados, muitas vezes escassos, que possuo.)
Casa roubada, trancas na porta
Após uma grande tragédia as pessoas ficam mais alerta e Pedrógão Grande não foi exceção. O país ficou mais ciente das suas fragilidades e do real perigo dos incêndios rurais.
Muito foi dito, nem tanto foi feito, após os trágicos acontecimentos de 2017. Houve melhorias sem dúvida, mas é curto, é pouco, é insuficiente. A saúde mental tem de ser uma prioridade, não são só as queimaduras que nos ferem.